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21 de setembro de 2009

Delfim: ‘Lula salvou o capitalismo’


Ex-ministro diz que falta de regulação provocou crise financeira global

Homem-forte da economia no regime militar, o ex-ministro Delfim Netto defende a volta do "Estado indutor", em substituição ao "mercado perfeito", que naufragou com a crise global. Em entrevista ao GLOBO, ele disse que a falta de regulação do sistema bancário está na raiz da crise. "Não há mercado sem Estado forte." Um dos principais conselheiros do presidente Lula, Delfim disse ainda que o governo foi o primeiro a perceber que "o mundo não acabaria" e que o capitalismo deve aos programas de distribuição de renda sua sobrevivência no país. "Ele (Lula) mudou o país de forma importante, de forma a salvar o capitalismo". Aos 81 anos e recuperando-se de cirurgia para colocação de dois stents, para ajudar no fluxo sanguíneo do coração, Delfim retoma aos poucos a rotina de trabalho. Chega antes das 7h ao escritório, num casarão do Pacaembu, em São Paulo. Sua sala, no segundo andar, comporta uma mesa com seis cadeiras, uma escrivaninha e duas estantes com 500 livros. É só parte da biblioteca que começou a reunir aos 14 anos, e que soma 250 mil títulos, catalogados e guardados em casa. Ex-ministro da Fazenda e do Planejamento e ex-embaixador na França, ironiza a ideia de escrever suas memórias. "Morro de dar risada dos livros de memórias de meus amigos. Frequentemente, há exagero".

Aguinaldo Novo

Um ano depois da quebra do Lehman Brothers, ainda se discute a origem da crise. Por que não foi possível prever o desastre?

DELFIM NETTO: As crises são próprias ao capitalismo. Nos últimos 150 anos, houve 42 crises. Umas maiores, outras menores. Esta foi diferente no sentido de que foi uma crise de omissão do Estado. Criou-se a mitologia de que o mercado era perfeito, resolveria sozinho qualquer problema. O mercado é um instrumento poderosíssimo, mas precisa de regras. Não há mercado sem Estado forte, justamente para garantir seu funcionamento. Não houve só um fracasso dos economistas. Houve um fracasso, na verdade, da orientação da teoria econômica.

Como Alan Greenspan (ex-presidente do banco central americano) sai da crise?

DELFIM: Ele disse que não entendia o que estava acontecendo. Meu Deus, ele era o Fed! Por definição, era o repositório de todo o conhecimento econômico dos últimos 250 anos. Essa crise misturou economistas que se pretendiam matemáticos e físicos desempregados, que construíram fórmulas que pretensamente seriam capazes de estimar o risco.

O pior da crise já passou?

DELFIM: É muito pouco provável que você tenha uma nova recaída, porque já existe liquidez e investimentos. O que vai acontecer agora é que os economistas vão se dedicar à criação de ciclos alfabéticos. Tem a crise do tipo A, que vai e volta e faz um corte. A do tipo B, que são duas bolinhas ligadas por um traço. Do L, que baixa e vai. A do W: já foi, voltou, mas vai ter outra.

Mas nenhuma das medidas prometidas, como maior regulamentação do mercado, saiu ainda do papel.

DELFIM: Talvez nos próximos 20 anos não tenhamos mais 40% ou 50% de alavancagem (volume de empréstimos em relação ao capital próprio dos bancos). Agora, não dá para garantir o futuro. A memória é curta e os lucros exercem fascínio sobre o homem.

Por que o Brasil foi um dos últimos a entrar e um dos primeiros a sair da crise?

DELFIM: O mercado interno estava organizado e resistiu à crise. Além disso, não tínhamos nenhum problema bancário. O Proer (editado durante o governo Fernando Henrique Cardoso) higienizou o sistema bancário brasileiro.

Qual deve ser o resultado do PIB neste ano?

DELFIM: Pode ser -0,4%, -0,5% ou 0,2% positivo. É pouco provável que seja significativamente diferente de zero. Para 2010, você tem uma fatalidade aritmética. Quando estivermos nas eleições, a economia estará correndo a 4,7%, 4,8% anualizados, o que vai garantir uma eleição tranqüila.

Tranquila como?

DELFIM: No velho Oeste americano, existia o sujeito que vendia óleo de cobra. Curava de unha encravada a câncer no cérebro. O Brasil está cheio desses vendedores. Com o avanço do PIB, eles sumirão.

Qual o mérito do presidente Lula na recuperação?

DELFIM: O Lula foi o primeiro economista a dizer que, se todos procurassem por liquidez, morreríamos por excesso de liquidez. Os economistas mais sofisticados ironizaram isso. O que ele queria dizer era que o pânico não era parte da solução, mas o problema. O governo foi o único agente a dizer que o mundo não acabaria.

A maior presença do Estado na economia não é tão perigosa quanto sua ausência?

DELFIM: Esse mundo sem intervenção estatal começou com o (Ronald) Reagan e com a (Margaret) Thatcher e terminou como terminou: mal. O mundo vai voltar a ter aquela intervenção que sempre teve. É uma ilusão pensar o contrário. Os EUA sempre tiveram a maior intervenção estatal do mundo, que acabou por produzir as grandes inovações.

O governo deu maior poder à Petrobras e se fala também em aumentar a presença do Estado na petroquímica e mineração. Qual o risco de se confundir maior peso do Estado com reestatização?

DELFIM: Quando digo Estado, é o Estado indutor. Não há desenvolvimento que não tenha sido estimulado por um Estado. Agora, o Estado produtor é uma porcaria. No Brasil, vejo grupos, não a nação querendo a reestatização.

Mas o sr. considera legítimas as críticas do Lula à administração da Vale, uma empresa que foi privatizada?

DELFIM: Legítima é uma expressão complicada. O Lula tem virtudes e desvirtudes. Ele mudou o Brasil de forma importante, de forma a salvar o capitalismo. O capitalismo é um processo de competição feroz, é uma corrida. E o que se exige numa corrida? Pelo menos que o ponto de partida seja o mesmo e que as pessoas tenham duas pernas. Uma igualdade de oportunidades para o sujeito que foi produzido na suíte nupcial do Waldorf Astoria e para o produzido debaixo do lampião. A crença na sociedade de que se caminha para uma igualdade de fato vem acontecendo, com melhor distribuição de renda. Isso é fundamental para salvar o capitalismo.

Não é uma contradição para um governo eleito com as bandeiras da esquerda?

DELFIM: A última coisa que este governo fez foi se opor ao capitalismo. E muito menos ser marxista ou outra coisa. Digo que há coisas acontecendo que são fundamentais para a sobrevivência do processo.

Banco público no Brasil tem de dar lucro?

DELFIM: Banco público é um poderoso instrumento de política pública. A crítica fácil que se faz hoje, de que eles só puderam expandir o crédito porque não prestaram atenção à inadimplência futura, vai se revelar absolutamente falsa. Não vamos cair na conversa mole de que eles prejudicam o sistema privado. Quando não funciona, dá cobertura para o privado ser mais ineficiente. Quando funciona, obriga o privado a ser mais eficiente. É o que acontece agora.

Quando o sr. esteve no governo, foi chamado até de "czar" da economia. Foi uma qualificação justa?

DELFIM: Era simplesmente confundido com o sucesso da política econômica do governo, o que contrariava as pessoas da oposição.

Parte dessa oposição está no PT. E o sr. hoje é conselheiro do presidente Lula. O que aconteceu?

DELFIM: Basta olhar os meus trabalhos desde 1954, quando saí da escola: não mudaram muito. Mas a esquerda mudou. Ela demora, mas aprende.

O sr. vai escrever um livro de memórias?

DELFIM: Posso talvez deixar alguma coisa. Mas falta tempo e também não é o meu objetivo. Morro de dar risada dos livros de memórias dos meus amigos, porque os conheço. Frequentemente, há algum exagero.

Como gostaria de ser lembrado?

DELFIM: Como alguém que trabalhou, nada mais.

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