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17 de março de 2008

Privilégio e impunidade


Virou primeira página dos jornais. Em junho de 2005, um ex-ministro caiu na rede da Polícia Federal. A Operação Confraria desmantelou uma quadrilha que fraudava licitações na Prefeitura de João Pessoa, a capital da Paraíba, e prendeu oito pessoas – entre elas, Cícero Lucena, ex-ministro da Secretaria de Políticas Regionais do governo Fernando Henrique Cardoso, apontado como um dos mentores de um desvio de R$ 50 milhões. Lucena ficou em prisão temporária por dois dias. Solto, passou a responder a processo no Tribunal de Justiça da Paraíba, e não numa vara de primeira instância, porque era ex-prefeito de João Pessoa e tinha direito a foro privilegiado. Foi apenas a primeira etapa de um percurso repleto de ziguezagues, que mostra como as leis abrem as portas para a impunidade. Acompanhe.

DESVIO: ainda em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a extensão do foro privilegiado a ex-prefeitos. O processo contra Lucena teve então de ser transferido do Tribunal de Justiça para uma vara de primeira instância da Justiça Federal.

AVANÇO: em agosto de 2006, o Ministério Público Federal da Paraíba denunciou Lucena por desvio de recursos federais, estelionato, lavagem de dinheiro, fraudes em licitações, tráfico de influência e formação de quadrilha.

MARCHA A RÉ: em outubro de 2006, Lucena ganhou um mandato de oito anos no Senado pelo PSDB e reconquistou o direito ao foro privilegiado. Seu processo subiu da Justiça Federal da Paraíba para o STF, único tribunal em que senadores podem ser processados e julgados. Tudo voltou praticamente à estaca zero.

NA GAVETA: em abril de 2007, o processo chegou ao gabinete do ministro Gilmar Mendes, do STF. De lá para cá, aguarda a manifestação do procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza.
Quase três anos depois da Operação Confraria, praticamente nada se avançou na Justiça no caso das fraudes das licitações em João Pessoa. Nem mesmo para provar a inocência dos supostos culpados. Em casos assim, o problema não é apenas a morosidade da Justiça. Poucas coisas cristalizam tanto a idéia de que a igualdade perante a lei, um princípio constitucional, ainda é uma ficção no Brasil quanto o foro privilegiado. “Num sistema democrático que determina que somos todos iguais perante a lei, ele é uma aberração”, diz o cientista político Aldo Fornazieri, diretor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Segundo levantamento da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o foro privilegiado virou uma válvula de escape de punição na Justiça para autoridades flagradas em irregularidades. Das 130 ações penais contra autoridades que, por uma questão de foro privilegiado, tramitaram no STF entre 1988 e 2007, nenhuma resultou em condenação. Das 483 que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça, houve condenação em apenas cinco casos.

Não era, em princípio, para ser assim. O foro privilegiado foi criado para preservar algumas autoridades nacionais, como o presidente da República, de responder a ações espalhadas por instâncias inferiores de todo o país. Concentrar as ações contra as autoridades num único tribunal foi a fórmula encontrada. “O foro privilegiado se justifica nos casos dos presidentes dos Poderes: o presidente da República, o presidente do STF, os presidentes da Câmara e do Senado”, diz o juiz Rodrigo Collaço, ex-presidente da AMB. Mas o que era para ser uma exceção virou regra. A lista de autoridades com direito a foro privilegiado hoje no Brasil é imensa. Ela inclui não só o presidente e o vice-presidente da República, mas também os deputados federais e senadores, os ministros de Estado, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais de Contas da União (TCU) e dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE E STM), os chefes de missão diplomática permanente, os governadores, os desembargadores dos Tribunais de Justiça, os membros dos Tribunais de Contas Estaduais, dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos e Tribunais de Contas de Municípios, os integrantes do Ministério Público Federal, os juízes federais, militares e do trabalho, os prefeitos, os juízes estaduais e os promotores de Justiça – enfim, praticamente todo o espectro de autoridades com algum poder sobre os orçamentos públicos.

Entre 1988 e 2007, foram editados 3,6 milhões de normas no Brasil. Tal excesso detém a Justiça

A noção de que aqueles que têm poder devem ter mais direitos que os outros tem raízes históricas no Brasil, uma sociedade fundada na desigualdade, e não na igualdade. No livro Cultura das Transgressões no Brasil – Lições da História, o historiador José Murilo de Carvalho enquadra a sociedade brasileira em quatro camadas. A primeira reúne as pessoas “acima da lei”, formada pelos cidadãos de primeira classe (são os “doutores”: brancos, ricos e com educação superior). A segunda é formada por pessoas que “não podem fugir da lei”: elas a respeitam e a temem, mas não são beneficiadas por causa das dificuldades de acesso à Justiça. São em geral os 44% dos eleitores com ensino fundamental, completo ou incompleto. A terceira reúne as pessoas “abaixo da lei”, no campo e nas grandes metrópoles. É formada por subcidadãos analfabetos ou que mal escrevem ou lêem. Finalmente, há a quarta camada: as pessoas que “não podem ignorar a lei”. Ela é formada pela classe “média média”. São os cidadãos que têm menos oportunidade de burlar a lei que os cidadãos de primeira classe, mas a burlam sempre que podem.

Uma pequena amostra dessa realidade aparece no balanço feito por ÉPOCA das 292 operações realizadas pela Polícia Federal entre 2003 e 2006 (as 216 que têm envolvimento de agentes públicos mais os outros 76 casos). Entre as 4.691 pessoas detidas pela PF, havia políticos, grandes empresários e altos funcionários públicos. Cinco anos depois das primeiras operações, 347 pessoas estavam cumprindo pena atrás das grades. Como muitos dos processos ainda continuam e correm sob sigilo, não foi possível saber a qualificação de cada um dos presos. Mas, segundo delegados, promotores e juízes responsáveis por esses casos, a maioria dos condenados presos é de classe baixa, como desempregados, motoristas e autônomos. “No Brasil, a punição obedece ao critério da capacidade financeira do réu, não de sua culpabilidade”, diz o deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), ex-presidente da Associação de Juízes Federais (Ajufe).

A capacidade financeira acaba fazendo diferença num país com mania de regulamentação, que valoriza, como poucos, as leis e os bacharéis. Um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário mostra que, entre o dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, e o dia 5 de outubro de 2007, 3.618.013 normas foram editadas no Brasil para reger a vida do cidadão. Quem ganha com esse cipoal de leis e regras não é – na maior parte das vezes – o cidadão. São as corporações que operam o sistema jurídico. Os advogados contam com um arsenal quase infinito de artifícios para postergar os julgamentos da Justiça. Há recursos, exceções, liminares, habeas corpus, embargos, agravos, apelações, ações rescisórias e toda a sorte de instrumentos cujo significado pode ser resumido da seguinte forma: são capazes de manter qualquer acusado fora da cadeia, desde que ele tenha recursos financeiros para bancar bons advogados por anos a fio que arrastem seus processos. O excesso de leis, segundo José Murilo de Carvalho, incentiva a transgressão e elitiza a Justiça. “Quanto mais recursos (financeiros) tiver o cliente, mais recursos (judiciais) haverá no processo”, diz uma sentença corrente entre os advogados brasileiros.

A lógica é a seguinte: o juiz de primeira instância condenou um acusado? Cabe recurso ao tribunal de segunda instância. Nova condenação em um Tribunal Regional Federal? Há possibilidade de contestar a decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se o STJ decidir que o réu é culpado, há ainda uma escapatória: recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em muitos casos, o processo se prolonga tanto que a pena prescreve e o crime não pode ser mais julgado. Os recursos contra as sentenças não passam de manobras protelatórias para impedir a punição. Segundo dados do STF, uma decisão pode demorar até 20 meses na primeira instância, 40 meses na segunda e outros 40 meses nos tribunais superiores. Não é raro um processo atravessar mais de uma década sem que o julgamento do acusado chegue ao fim.

O deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) começou a ser processado nos anos 1980 por ter usado dinheiro público para criar a Paulipetro, uma empresa estatal para prospectar petróleo, quando era governador de São Paulo. Em 1997, Maluf foi condenado a devolver dinheiro aos cofres públicos pelo fato de a companhia não ter encontrado s nenhuma gota de petróleo. Em outubro de 2007, o STF negou o último recurso contra a condenação. Até agora, Maluf não devolveu um só ceitil ao Erário. Há um mês, seus advogados anunciaram mais um recurso contra a cobrança da dívida.

Para tentar mudar essa realidade, os especialistas pregam uma reforma nos códigos que regem os processos. A primeira medida seria uma redução drástica na possibilidade de recursos contra sentenças de Justiça. “Em qualquer lugar civilizado do mundo, garante-se ao cidadão o duplo grau de jurisdição”, diz o ministro Ricardo Lewandowski, do STF. “Isso significa que ele é julgado por um juiz de primeiro grau e tem o direito de apelar para um juízo colegiado, mais experiente. E ponto final. No Brasil, temos quatro instâncias de recursos.” Para Rodrigo Collaço, da AMB, além de acabar com o foro privilegiado, é essencial valorizar as decisões de primeira instância da Justiça. “Por causa da possibilidade ilimitada de recursos, os juizados de primeira instância se transformaram em meras cortes de passagem no caminho até o STF”, diz ele.

No Brasil, um processo pode durar décadas. A lei estimula as manobras processuais que geram a impunidade

O sistema brasileiro é inspirado na tradição européia de dar prioridade às formalidades legais que garantem o amplo direito de defesa. É um princípio correto, ampliado pela Constituição de 1988, feita para expurgar os desmandos do período de ditadura militar. Mas ele acabou sendo deturpado. Na Alemanha, onde o sistema penal tem a mesma origem que o brasileiro, a possibilidade de recursos é menor. Isso dá velocidade aos processos. Lá, a média de duração é de apenas dois anos – aqui ninguém se arrisca a fazer as contas, mas é comum as coisas se arrastarem por oito anos. “A ação penal alemã é concentrada. Existem atos que são verbais, a rapidez é maior”, diz o subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, que fez mestrado na Alemanha.

Segundo o ministro Lewandowski, outra medida necessária é aumentar o prazo concedido em lei para que o Estado puna alguém por um crime, conhecido tecnicamente como tempo de prescrição. Esse prazo varia de dois a 20 anos, de acordo com a extensão da pena. “Os prazos são em geral curtos e permitem que, por meio de manobras processuais, se alcance a prescrição”, diz Lewandowski. Um dos problemas é que o prazo começa a ser contado a partir da denúncia e continua a correr durante o processo. É um estímulo para que os advogados tentem retardar o andamento de processos, porque sabem que isso aumenta as chances de seus clientes escaparem impunes. “Se for retirada do Código de Processo Penal a possibilidade de prescrição no meio do processo, muita gente vai se sentir desestimulada a ficar pagando advogado”, diz Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República em São Paulo.

A rapidez do sistema americano

Nos EUA, os acordos entre a Justiça e os réus aceleram o andamento de processos
Nos Estados Unidos, a maioria dos julgamentos de crimes não dura mais de seis meses. “Nosso sistema é rápido e rígido”, afirma James Jacobs, diretor do Centro de Pesquisa em Crime e Justiça da Universidade de Nova York. “Quem é condenado à prisão pode recorrer, mas tem de continuar na cadeia enquanto sua apelação é julgada.” Lá, há mecanismos que permitem ao Ministério Público, em conjunto com juízes, combinar com o réu as acusações pelas quais ele será processado e a pena que cumprirá. Esse tipo de acordo reduz o tempo do processo, assegura rapidez na punição e diminui a carga de trabalho no Judiciário. Foi o que aconteceu no caso dos líderes da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, presos por entrar nos EUA com US$ 56 mil não-declarados. Eles fizeram um acordo com a Justiça americana e foram condenados a cumprir dez meses de prisão e mais dois anos de liberdade condicional. No Brasil, esse tipo de acordo só é feito em casos de crimes de “menor grau ofensivo”, com pena máxima de dois anos. “A eficácia do sistema americano é muito maior”, diz Luís Geraldo Lanfredi, da Escola Paulista da Magistratura. “No Brasil, a punição só ocorre se estão esgotados todos os recursos.”

Para diminuir a quantidade de recursos em processos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) defende a adoção de uma norma que encerraria alguns processos em certas instâncias, conhecida como súmula impeditiva de recursos. “Ela apontaria quais ações se encerrariam nos Tribunais de Justiça ou nos Tribunais Regionais, desafogando as cortes superiores”, diz Cezar Britto, presidente nacional da OAB. Essa é uma idéia inspirada numa novidade introduzida pela reforma do Judiciário aprovada pelo Congresso em 2004, a súmula vinculante. Ela obriga os juízes a seguir as decisões já adotadas pelo STF ou pelos Tribunais Superiores sobre temas já consolidados. O objetivo é diminuir o número de processos em tramitação.

A súmula vinculante foi um dos avanços ocorridos nos últimos anos para dar maior eficiência ao sistema judiciário. Nenhum deles tem produzido, porém, tantos resultados positivos no combate à impunidade como a implantação dos tribunais especializados para o julgamento de alguns crimes, como mostra a reportagem seguinte.

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